Sempre que tenho oportunidade, digo que acompanhar as juventudes exige muito estudo e dedicação, não apenas ousadia e jeito. É preciso “encarnar” a vida com o olhar daquele ou daquela que está sendo acompanhado. É algo personalizado, artesanal, que com muito cuidado precisa ser olhado e, como diz a própria Sagrada Escritura: “é necessário tirar as sandálias porque o solo que estamos pisando é sagrado”, independente da matéria e do objeto que for o diálogo apresentado no acompanhamento.
Uma ética deve envolver o acompanhamento espiritual, quase como uma experiência confessional. Entretanto, como a própria ética que envolve a ciência psicológica nos diz ainda hoje, em caso de risco de vida, é preciso envolver terceiros. Em decorrentes acompanhamentos de jovens ao longo dos três últimos anos, tenho me deparado com mais frequência do que imaginava com a realidade da automutilação. Com isso, resolvi me debruçar em pesquisas, conversas com outros profissionais e até entrevistas em podcasts para que mais tarde pudesse escrever algo sobre o assunto para outros acompanhadores – religiosos ou não.
Para início de conversa, quero deixar claro que não tenho intenção de apresentar uma receita, um manual ou algo do tipo; pelo contrário, através de alguns manejos, quero avançar na discussão e no diálogo para melhor favorecer aqueles e aquelas que acompanhamos.
Trouxe aqui o fruto dessas conversas, diálogos e entrevistas que fiz sobre o assunto, somado com os artigos que li e compreendi que fossem sérios para a ação concreta de acompanhar esses jovens, frutos de nosso tempo presente.
O papel do acompanhante espiritual é essencial na vida de muitas pessoas, oferecendo apoio emocional e espiritual. Quando um jovem revela que está se automutilando, é crucial que o acompanhante saiba como agir de maneira apropriada, respeitosa e eficaz. Para te ajudar nisso, quero começar primeiramente trazendo conceitos e, após, alguns manejos.
Para entender melhor, a automutilação, especialmente entre adolescentes, é um fenômeno complexo que exige uma abordagem multifacetada e cuidadosa. Entender os motivos que levam os jovens a se automutilarem é essencial para oferecer o suporte adequado. A automutilação é frequentemente uma tentativa de lidar com dores emocionais intensas, que parecem mais insuportáveis que a dor física autoinfligida. Essa prática pode ser vista como um meio de desviar a atenção da dor emocional para uma dor física mais controlável e, aparentemente, menos intensa.
O termo “automutilação” é multifacetado e pode englobar desde ferimentos leves até lesões graves, cada uma com suas nuances e significados. Termos como “auto-lesão não suicida”, “cutting” e “self-injury” são frequentemente usados como sinônimos, mas possuem particularidades próprias que refletem a diversidade do comportamento e suas causas.
Os adolescentes relatam que a dor física causada pela automutilação é uma forma de aliviar ou desviar a atenção de dores emocionais profundas. A prática de cortar-se, por exemplo, é uma maneira de lidar com emoções avassaladoras que não conseguem ser expressas ou resolvidas de outra maneira.
Os fatores que contribuem para a automutilação são múltiplos e complexos, incluindo abuso sexual, problemas familiares, exposição à violência, isolamento, bullying e dificuldades emocionais. A automutilação está relacionada a um maior risco de tentativas de suicídio, o que torna essencial a busca por ajuda profissional.
Impacto da internet e redes sociais
A internet e as redes sociais têm desempenhado um papel significativo na propagação de comportamentos autolesivos. Comunidades online e grupos em redes sociais podem tanto servir como um espaço de apoio quanto potencializar o comportamento através da exposição a conteúdos que romantizam ou incentivam a automutilação. Esse efeito de contágio pode ser particularmente perigoso, pois a exposição contínua a esses conteúdos pode desencadear ou agravar o comportamento.
Ouvi isso no acompanhamento espiritual. E agora? Qual é o meu papel?
Ao lidar com jovens que se automutilam, é crucial que o acompanhante mantenha uma postura empática e compreensiva, reconhecendo a profundidade do sofrimento emocional envolvido. Simplesmente aconselhar o jovem a parar com a prática pode ser percebido como uma falta de compreensão e apoio. É importante oferecer um espaço seguro para que o jovem expresse suas dores e sentimentos e, ao mesmo tempo, incentivá-lo a buscar ajuda profissional.
Quero com você agora, caro acompanhante, dissecar cada um desses elementos que apresentei acima, e dessa forma poderão, caso queiram, se aprofundar em outras literaturas. Aproveito para também expor algumas posturas que podem não ser adequadas quando o assunto no acompanhamento seja a automutilação.
Ouvir com empatia e sem julgamento
A primeira e mais importante ação é ouvir o jovem com empatia e sem julgamento. Mostre-se disponível para ouvir e compreender o que ele está passando. O jovem precisa sentir-se seguro e acolhido para compartilhar seus sentimentos e experiências.
Oferecer apoio espiritual
Como acompanhante espiritual, seu papel é oferecer conforto e apoio, mas sem se utilizar de fundamentalismos. Utilize sua formação para proporcionar meditações ou leituras espirituais que possam ajudar o jovem a encontrar um sentido maior e força para enfrentar suas dificuldades.
Incentivar a busca por ajuda profissional
Embora saibamos que nosso papel de acompanhante espiritual desempenha uma ação significativa, é essencial reconhecer os limites desse papel. Incentive o jovem a procurar ajuda de profissionais de saúde mental, como psicólogos ou psiquiatras. Explique que a automutilação é um sinal de sofrimento profundo que requer a atenção de especialistas.
Manter a confidencialidade com responsabilidade
É importante manter a confidencialidade das conversas, mas também estar ciente das situações em que a segurança do jovem está em risco. Se houver um perigo iminente de autoagressão grave, o acompanhante espiritual deve comunicar-se com os responsáveis pelo jovem ou buscar ajuda de serviços de emergência, nunca sem o consentimento desse jovem. Portanto, em sua conversa, diga da importância e da necessidade de informar alguém que seja também da confiança dele.
Não minimizar os sentimentos do jovem
Evite minimizar ou desconsiderar os sentimentos do jovem. Frases como “Isso é só uma fase” ou “Você precisa ser mais forte” podem agravar o sofrimento e afastar o jovem do apoio que ele necessita.
Não oferecer conselhos médicos
Não tente substituir o aconselhamento ou tratamento médico. A automutilação é uma questão séria que exige intervenção profissional. Mantenha seu foco no apoio espiritual e emocional, deixando o tratamento clínico para os especialistas.
Não Julgar ou Culpar
Evite julgamentos ou culpas. Comentários que implicam que o jovem é fraco ou pecador por suas ações não são úteis e podem aprofundar o sentimento de isolamento e culpa.
Busque expressões de apoio e empatia
– “Estou aqui para você.”
– “Você é importante e sua dor também.”
– “Vamos buscar juntos maneiras de você se sentir melhor.”
Encorajamento para buscar ajuda profissional
– “Você já pensou em conversar com um psicólogo sobre isso?”
– “Existe ajuda disponível e você merece receber esse apoio.”
É necessário também se perguntar acerca do acompanhamento após a revelação do jovem sobre a automutilação. Trouxe também algumas propostas:
Acompanhamento contínuo
Continue a oferecer apoio ao jovem, mostrando-se disponível para conversas futuras e acompanhando seu progresso. Esteja atento a sinais de agravamento ou melhoria no estado emocional do jovem. Lembre-se de que você é alguém em quem ele confia, e este não é o momento de sumir ou evitar o jovem.
Comunicação com responsáveis
Se for seguro e apropriado, comunique-se com os responsáveis pelo jovem sobre suas preocupações, incentivando-os a buscar ajuda profissional. Faça isso com o consentimento do jovem, quando possível, para manter a confiança.
Auto-Cuidado do acompanhante espiritual
Lidar com situações de automutilação pode ser emocionalmente desgastante. Certifique-se de cuidar de si mesmo, buscando apoio e orientação espiritual e psicológica para continuar desempenhando seu papel de maneira eficaz. Digo isso de maneira muito séria: não é aconselhável que se acompanhe alguém se o acompanhante mesmo não for acompanhado. É preciso criar a consciência da necessidade de uma rede de apoio também para nós acompanhantes.
O acompanhante espiritual tem um papel valioso ao oferecer apoio e conforto em momentos de dor, mas deve atuar dentro de suas capacidades e limites. Ouvir com empatia, oferecer apoio e incentivar a busca por ajuda profissional são passos fundamentais para ajudar jovens que revelam estar se automutilando. Com um comportamento compassivo e orientações adequadas, o acompanhante espiritual pode ser uma fonte significativa de esperança e força para esses jovens. Sabendo o nosso papel, seja no retiro, na comunidade eclesial ou até mesmo online, conseguiremos de fato contribuir para que esse jovem consiga dar um salto qualitativo e efetivo em seu processo.
Deixo aqui também o link do Spotify da entrevista que fiz com a psicóloga Cibele Rezede sobre o tema. Espero ter ajudado você!
